“E a cabeça tem de ficar?”, é um espectáculo construído com base em alguns (dos pequenos) textos de Karl Valentin (1882-1948), autor e intérprete alemão, considerado um dos fundadores do café-teatro e integrado pelos historiadores no teatro do absurdo. Não se trata de uma peça no sentido tradicional, mas uma colagem articulada de pequenas peças, onde, a partir de banalidades, e num crescente somatório de complicações, se parodia o viver do dia-a-dia.
Trata-se de um espectáculo cómico que a princípio se estranha, mas que se vai entranhando na medida em que se desdobra, não através da piada fácil, ou de sketches brejeiros, mas através do que muitos consideram o segredo de todo o humor profundo: aquele que nos leva a rir de nós próprios, enquanto imaginamos que estamos a rir do que se passa no palco.
1 – Com este espectáculo* a Companhia de Teatro de Sintra encerra o (segundo) Roteiro da Intemporalidade, iniciado em 2005 com Strindberg e que continuou até esta 66ª produção, com Ibsen, Tchekov, Jean Cocteau, Maeterlinck, Eugene O´Neil e Pirandello. Pretendemos assim enriquecer o nosso reportório, com autores incontornáveis da dramaturgia ocidental, numa abordagem que não se pretende cronológica mas elucidativa de uma época (desde finais do séc. XIX até à década de 60 do séc. XX) rasgada por convulsões sociais e políticas e pela multiplicação de movimentos artísticos.
Essencialmente, o procurar de fios condutores e a vontade de, na encruzilhada do mundo em que vivemos, questionar injunções dentro desta área artística através da (re)visitação dos clássicos, alguns deles poucas vezes representados, assim como estimular a dimensão estética e intemporal que emana dos mesmos. Mas também, o continuar a questionar o nosso percurso como pessoas e criadores, lutando contra a inércia da “funcionalização criativa” – que, não raro, resvala e revela mentalidades “de curto alcance”, que nada têm a ver com os objectivos humanistas da arte e da cultura – e ainda, valorizar o prazer de ouvir, ler e pensar, favorecendo não só a criação, como a consolidação de públicos sensíveis e informados, neste tempo em que os governantes nos querem esmagar com o discurso esotérico, “único e infalível”, do economismo, economismo este que, como escreve Craig Calhoun, “é uma forma de etnocentrismo”.
2 – Ao montarmos “E a cabeça tem de ficar? ”, colocamo-nos contra a corrente de massificação acéfala, escolhemos pensar com um autor que, aparentemente, desconversa, complica, não diz nem quer dizer nada. Ao escolhemos Karl Valentin, escolhemos o olhar sobre o desconcerto do mundo e do país, este, onde temos vivido acima das nossas possibilidades – pelo menos é o que nos dizem todos os dias. Ao escolhermos este autor, fazemos uma opção ética: entre a renúncia ou o riso alarve, escolhemos o rir de nós, e convidamos o público ao mesmo exercício. Porque saber rir de nós, vai além dos lábios e da garganta. Desce o diafragma e chega à alma, essa que é o nosso alicerce e a nossa esperança contra a desilusão e o imobilismo.
3 – Quatro foram os desafios que desde o início colocámos como prioritários na montagem desta peça. O primeiro passava por propor aos actores o mínimo envolvimento psicológico na representação, antes procurando o jogo rítmico da fonética dos textos e (da perplexidade) das situações. Um segundo desafio centrava-se na exploração das características corporais de cada um dos dois actores em palco, sem cair na imitação do dueto Karl Valentin-Liesl Karlstadt. Os outros dois desafios provinham do método de trabalho usado no anterior espectáculo da Companhia – e ainda num outro, do grupo de marionetas do Chão de Oliva, o “Fio d´Azeite” – onde participou, no essencial, a mesma equipa, e que tinha a ver com a utilização de praticamente um único objecto em cena – a perseguição do objecto polimorfo, neste caso uma bicicleta; por fim, a articulação, não narrativa, dos vários quadros, a procura do todo através dos fluídos de cena: luz, espaço (s),música, movimento, etc.
4 – É conhecida a admiração e a influência que Karl Valentin teve sobre Brecht, que sobre aquele escreveu: “ (…) Quando este homem, uma das figuras mais penetrantes do seu tempo, apresenta aos simples, em carne e osso, as relações entre a placidez, parvoíce e alegria de viver, o velho animal escuta no mais íntimo de si próprio”.
João de Mello Alvim
* Antes do corte de 38%, decretado unilateralmente pela Direcção Geral das Artes/Secretaria de Estado da Cultura, sobre um protocolo assinado em 2009 entre esta Direcção Geral e o Chão de Oliva – corte extensivo a todas as estruturas quadrienais e bianuais -, o espectáculo previsto era uma co-produção com o Teatro da Mala Voadora
Encenação: João De Mello Alvim; Dramaturgia: Manuel Sanches; Investigação e Organização Documental: Carla Dias; Interpretação: Alexandra Diogo e Nuno Machado; Assistente do Encenador: João Mais; Direcção Musical: André Rabaça; Interpretação musical: Isabel Moreira (piano) e Samuel Matias (saxofone); Desenho de luz: André Rabaça; Cenografia e Figurinos: Companhia de Teatro de Sintra; Costureira: Adélia Canelas; Fotografia e Design Gráfico: André Rabaça; Direcção de produção: Nuno Correia Pinto; Assistente Produção: Nuno Machado; Secretária de Direcção e Produção: Cristina Costa; Direcção Técnica: André Rabaça; Técnico Auxiliar: Pedro Tomé
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