A maternidade, o casamento, a religião, o papel social da mulher são temas estruturantes na obra de Frederico Garcia Lorca, e criaram um alerta para muitas hipocrisias da sociedade de sua época, que se mantêm mais ou menos matizadas, nos tempos que correm. Porém, a leitura dos textos mostra-nos uma actualidade de muitos sentimentos e situações, obriga-nos a uma reflexão profunda de nosso papel e do poder de transformação que podemos adquirir se assumirmos o conhecimento do que nos cerca. Presenciamos a decadência da protagonista, quando nos certificamos que Dona Rosita não assumiu a vida como um projecto a ser construído de acordo com as circunstâncias, insistiu em não compreender as novas realidades e permaneceu costurando o enxoval do que esperava ser consumado. Perante diferenças entre o que é esperado e o que é vivido concretamente, como (re) agir? Noutra perspectiva, qual o paralelo que se pode fazer com a realidade que se vive em Portugal? Será que quem se acomoda, quem espera, nem sempre alcança?
Com Frederico Garcia Lorca, continuámos o “Roteiro da intemporalidade” que, desde 2005, é o eixo principal da programação da Companhia de Teatro de Sintra/CO. É um percurso de reflexão e divulgação de autores e textos que marcaram a história do chamado teatro moderno, que iniciámos com Ibsen e pensamos terminar em Beckett.
Nesta adaptação, “D. Rosita a solteira ou A Linguagem das flores”, optámos pelo segundo título daquela que, no dizer do autor, é “uma peça de uma doce ironia, de delicados traços de caricatura: uma comédia burguesa de tons suaves”. Tentámos ainda manter neste “poema granadino”, o equilíbrio entre os vários elementos simbólicos e narrativos de evocação do teatro popular que Lorca tão bem conhecia, com elementos de tecnologia contemporânea, nunca descurando o primado da palavra, dita ou cantada. Procurando que a palavrase afirmasse, se soltasse, em sintonia com o desejo de Lorca que “o teatro(…)é poesia que se ergue das tábuas e se faz humana”.
Dramaturgicamente, procurámos no cenário único onde se vai espelhando a passagem do tempo – impossível não pensar em Tchekov -, aquela espécie de não-acção das personagens diante da existência e a conciliação entre a crónica social – mais uma vez Tchekov -, e a poesia que faz do recurso ao símbolo um apelo ao desconhecido, um alargamento dos sentidos de multiplicidade, tantas vezes evocado por Lorca. Alargamento que nos pode levar a pensar na não-acção que marca os comportamentos das personagens, com a não-acção social que vivemos hoje em Portugal. Nós que também sabemos estar a ser enganados e continuamos areceber as mentiras “com um misto de entusiasmo e de soluços” e que, por vezes, “nos espantamos com a nossa própria reacção”.
Por fim uma nota sobre o privilégio que foi trabalhar com uma equipa com formação e percursos profissionais tão distintos. Da consagrada bailarina e coreógrafa Elisa Worm, que regressou ao trabalho em Sintra, à Joana Freches Duque que (praticamente) fez nesta “Linguagem”, a sua estreia profissional.
João de Mello Alvim
Autor: Federico Garcia Lorca; Encenação: João de Mello Alvim; Adaptação e Dramaturgia: Manuel Sanches; Interpretação: Alexandra Diogo, Joana Freches Duque e Nuno Machado; Assistente do Encenador: João Mais; Assistente de movimento: Elisa Worm; Adaptação musical e Apoio ao canto: Isabel Moreira; Apoio à manipulação da marioneta: Nuno Correia Pinto; Cenografia e Figurinos: João de Mello Alvim e CTS; Costureira: Adélia Canelas; Desenho de Luz: André Rabaça; Fotografia e Imagem Gráfica: André Rabaça; Direcção Técnica: André Rabaça; Técnico Auxiliar: Pedro Tomé; Direcção de Produção: Nuno Correia Pinto; Assistente Produção: Nuno Machado; Secretária de Direcção e Produção: Cristina Costa
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