Esta peça fala de um homem que perde a sua alma. No fim da sua vida, quando tudo lhe levava a crer que tinha feito o melhor possível para ser ele próprio, constata que a sua alma, o único valor que julga possuir, é matéria-prima que deve de novo ser reencaminhada para uma espécie de co-incineradora universal. A sua vida foi um monumental falhanço, um emaranhado de fios quebrados sem um fim lógico; nem sequer a morte lhe trará a paz que tanto ansiou. De modo brutal e inesperado, este personagem aventureiro, um sobrevivente, que resistiu às maiores investidas da fortuna e da sorte, toma conhecimento que aquilo que tinha sido no seu ponto de vista uma forma de “ser ele próprio” – uma fórmula existencial constantemente repetida e relembrada como lema justificativo das suas decisões e acções – tornou-se do ponto de vista dos outros uma forma de egoísmo e indiferença. A sua vida foi uma extensa lista de fugas misturada com pequenas mentiras em que a fantasia e a insensibilidade se confundiram. No final é a descoberta do amor que o condena a morrer e a perder a alma. A mulher que amou ficou à espera dele a vida inteira e perdoa-lhe o facto de ele ter atravessado o mar e fugido. Quando lhe pergunta onde esteve aqueles anos todos, Solveig responde – Estiveste na minha confiança, na minha fé, na minha promessa, na minha esperança, no meu amor, na minha paixão. Peer Gynt desesperado grita – O que é que estás a dizer? Fazes malabarismos com as palavras! São enigmas o que dizes! Tu própria és a mãe desse amor que aí está! Sem vacilar perante a tragédia que se avizinha, Solveig já velha e cega fala como se cantasse uma resposta longamente ensaiada e esperada – È verdade, que o sou! Mas quem é o pai? É ele que dá o perdão por causa das preces de uma mãe! És tu o Pai. Peer Gynt com o peito enrolado por uma tempestade chora e fala ao mesmo tempo – Minha mãe; minha mulher; minha mais pura das mulheres, esconde-me, esconde-me no meio do teu amor!
No meu trabalho tenho desenvolvido um interesse crescente pelo fazer, pelo prazer de ver e ouvir; pelo desejo de procurar inventar um fazer que faça crescer a vida dentro da vida; com alegria e tristeza, com a aspiração de abrir mais os olhos como se de um sopro se tratasse. Um sopro de palavras, um sopro de imagens, um sopro de vida.
Ao ler o extenso poema de Ibsen, Peer Gynt, as palavras misturaram-se com o ritmo, as imagens com o poema e desejei fazer qualquer coisa diferente, diferente do que tenho feito. Senti que um desejo antigo de construir um espectáculo que interrogue a música e o texto, desfocando os seus lugares naturais, emergia com clareza dentro de mim. Tinha acabado de trabalhar com dois extraordinários jovens músicos, na banda sonora da peça anterior. Aí também ficara uma promessa de colaboração futura. As coisas sobrepuseram-se e lancei o desafio. O Rui aceitou fazer de actor e de cantor e o Sérgio de compositor inspirado. A transformação do texto foi o passo que se seguiu. Começaram os trabalhos e as discussões sobre o espaço cénico conduziram-me à criação de um espaço que com o auxílio do vídeo se metamorfoseie entre os ambientes, os personagens monstruosos, as fantasias eróticas e amorosas e tempestuosas irrupções mentais.
Cada trabalho é um amontoado de pequenos detalhes, acidentes, continuidades, encontros, falhanços. Uma mistura desordenada de desejos, anseios, expectativas, imaginação frustrada, quedas e fragilidades. Este percurso tem sido muito caótico e por vezes assustador. Tenho aprendido a não controlar o que faço quando entro num processo criativo, procurando separar-me das coisas que vou guardando ao longo do processo de preparação. Por vezes sinto que tenho dentro de mim vários espectáculos a serem preparados ao longo dos anos; a dificuldade é que quando começo um muitos outros se misturam; assim a tarefa final é conseguir separá-los.
Para a História de Um Mentiroso, procurei caminhar sobre uma linha estendida, ganhando a confiança de percorrer o espaço sem olhar para o chão. Ou melhor dizendo, caminho de cabeça baixa de olhos pregados no chão a olhar para o céu.
João Garcia Miguel
Texto e Encenação: João Garcia Miguel (a partir de PEER GYNT de Ibsen); Assistência de Encenação: Tiago Matias; Interpretação e Música: Rui Lima e Sérgio Martins; Voz Feminina: Sara Belo; Cenografia: MANTOS; Figurinos: Alexandra Moura; Vídeo: NAVE; Modelo Vídeo: Cristina Basílio; Fotografia e Imagem Gráfica: Ana Lúcia Cruz e Rui Filipe Lima; Desenho de Luz: André Rabaça; Direcção de Produção: Maria João Fontaínhas; Produção Executiva: Catarina Nevesdias e Marta Vieira; Secretariado de Produção: Cláudia Gomes; Operação de Luz e Som: André Rabaça; Direcção Técnica: Nuno Correia Pinto; Montagem: André Rabaça e Pedro Tomé
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