A peça fala de chaves. De homens e mulheres que funcionam como chaves, para a vida, para o amor, para um poema e para a morte. Fala da construção de um homem pequenino que servirá de chave para que outros homens e mulheres possam entrar num nível outro da realidade. Sonham-no, constroem-no, dão-lhe um corpo e uma vida que ele acaba por recusar ou da qual se retira imperceptivelmente. Acontecem coisas que não têm explicação natural. As personagens da peça vivem num universo onde as coisas que fazem não estão bem, mas sim mal. É um armário que parece querer cair em cima de dele, um pai que cospe sem querer na filha, uma cama que os atira ao chão, mãos de onde saem palavras que compreendemos, mas não conhecemos. É um mundo onde as pessoas se encontram e se aceitam, de um modo que não é suposto, e onde tudo é consequência, pois estas antecipam as causas. Nesse mundo, no mundo do erro e da falha, em que o que se diz e se faz não procura, nem tem explicação, está-se sempre em queda lenta e vertiginosa, porque se tem duas cabeças. É por aqui que o vento entra e desloca a cabeça das estátuas, em que a areia se desfaz e destapa os restos de um tempo que já existiu, num passado qualquer, mais ou menos longínquo e que regressa agora outra vez. O que é a vida? Matar dragões, libertar princesas e derrotar lobisomens! É isso que é a vida. Aqui neste mundo somos todos hipersensíveis. Somos pessoas que apanham tudo o que alguém perdeu e não se deixa escapar nada. Tudo tem tanto sentido que estarmos ou começarmos em qualquer lado é sempre indiferente. Tudo parece lógico desde que esteja ou seja exterior a nós e há permanentemente um autocarro cheio de mensagens a chegar.
Este é o momento final em que tudo ecoa dentro de mim, em que me sento a escrever aquilo que de dentro se foi tornando superficial e que veio a tornar-se imagem e que agora vamos apresentar finalmente ao púbico, agora vamos finalmente trazer à luz. Esta alegoria entre trazer à luz e produzir imagens, entre fazer por que se tem que fazer, ou porque se quer, entre vencer a resistência inerente à própria existência. Este trazer à tona os sentimentos que nos animam e dar-lhes forma, tem se tornado para mim uma caminhada infinita em direcção a um lugar que eu sei que não existe, mas para o qual teimo em me dirigir, teimo em querer afirmá-lo e desejar construi-lo. Como se escorregasse por um plano demasiado inclinado para me suster de pé, ou voltado para uma outra fonte de luz, que não esse lugar da minha imaginação. Assim tenho vindo a fabricar pouco a pouco, peça por peça, um espaço onde me possa sentir e por um acaso desconhecido sentir os outros. Tenho tido a sorte de ter colaboradores excepcionais, que apostam comigo as suas vidas, a paciência de um público que percebe sempre mais do que lhe dizem e a sabedoria de poder trabalhar num país que me faz crescer a raiva e a frustração diariamente.
Olhando retrospectivamente, este Projecto Strindberg, contém algo de equação química, na explicação dos seus mistérios. Nesse sentido é como o medo e o amor, meros químicos à solta dentro de um corpo fechado sobre si mesmo. Contém a fortuna de um emblema, marcas de um gesto, de coisas que se repetem estratégica e inexplicavelmente ao longo de muitos anos. Repetição teimosa que transforma a matéria em formas, coisas que agora aparecem menos sombrias mas com mais sombras.
Repito mais uma vez, a abordagem à vida de um criador, como influência e sobreexcitação na minha capacidade de criar e imaginar. A fonte de inspiração foi a vida e as obras de August Strindberg. Por isso, o intitulei numa primeira instância de Projecto Strindberg, e só mais tarde A Entrega. Senti de imediato, no seu começo, que lhe queria dedicar mais do que uma criação, mais do que uma mera resposta numa obra teatral. Neste caso particular, o impulso primeiro, chegou a partir de uma sugestão do João de Melo Alvim para colaborarmos, e lançou-me numa identificação profunda com esse criador revolucionário e constantemente insatisfeito. Desde o inicio pretendi estender e desdobrar acções, desenvolver o projecto entre a escrita, a encenação e o desenvolvimento do trabalho dramatúrgico de um modo plástico e a abordagem de métodos de ensaio e representação ligados ao meu trabalho teórico, à ideia de actor imagem. O que aqui apresento agora, é um enlace entre acaso e continuidade, um nó entre criação solitária e uma rede colectiva de contribuições criativas.
Aqui por assim dizer, entrego numa queda, um abismo à procura de uma vida. A minha vida, a dos que me acompanharam e acarinharam e a vida de Strindberg, um escritor morto há quase um século. Quis que ele ressuscitasse e nos fizesse renascer a todos. É esse o primeiro propósito e a historia desta peça. Uma historia sem historia e sem possibilidade de se tornar realidade ou existência real. Aqui tudo é invenção e imaginação, uma criação que evolui desavergonhadamente e sem pudor nem medo de se espreitar para dentro daquilo que está fora de si.
João Garcia Miguel
Autor: João Garcia Miguel e Luís Vieira; Encenação: João Garcia Miguel; Assistência de Encenação: Tiago Matias; Cenografia: MANTOS; Figurinos: Flávio Tomé; Apoio ao Movimento: Luciano Amarelo; Interpretação: Anabela Teixeira, Cristina Basílio, Luciano Amarelo e Nuno Correia Pinto; Musica: Rui Lima e Sergio Martins; Desenho de Luz e Imagem Gráfica: André Rabaça; Fotografia: André Rabaça e João Garcia Miguel; Direcção de Produção: Maria João Fontaínhas; Produção Executiva: Catarina Nevesdias e Marta Vieira Secretariado de Produção: Cláudia Gomes e Laurinda Andrade; Operação de Luz e Som: André Rabaça Direcção Técnica e Montagem: Nuno Correia Pinto Montagem: André Rabaça e Pedro Tomé;
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