A VERDADEIRA HISTÓRIA DA GATA BORRALHEIRA

AUTOR: ROBERT WALSER
ENCENAÇÃO: JORGE LISTOPAD
DATA: 7 DE MARÇO DE 2002

SOBRE O ESPECTÁCULO

Os personagens de Walser, di-lo Walter Benjamin, “saem da noite”, acrescentando: “são personagens que passaram pela loucura”. De facto, estamos longe de configurá-los naquela tessitura de Razão e de equilíbrios (ou desequilíbrios) psicológicos que enforma os personagens de enredos ditos “realistas” – lugar-comum, convenção ou truque tão legítimos como o seu exacto contrário. É outra a “loucura” deles: chama-se inocência – e a “noite” de que saem é a noite da malignidade do mundo. Desta treva saem eles aureolados de uma luminescência que funde ingenuidade (a-histórica) e sageza (edénica). Serão seres frágeis, porém incorrigivelmente saudáveis, não contaminados, não sujeitos à corrosão normativa. Certo: não podiam ser, não são, “de carne e osso”. Nem são filhos do sono, muito menos do sono da Razão, esse que “engendra monstros”; vemo-los antes como entidades de fábula e maravilha, criaturas dos sonhos de um iluminado, puras emanações de um espírito “em estado de graça”, que se teima (autisticamente?, mas então onde situar a gentileza, a pontualidade, a preocupação pelo valor social do trabalho?) no Justo, no Belo e no Verdadeiro. Situam-se portanto para além do “bem” e do “mal” (tal os entende o mundo maniqueu), entrelaçam-se num jogo de arquétipos ausente de perversidade porque naturalmente “infantil”, alheio ao pecado original, com suas projecções de castigo e salvação. Sim, eles não alimentam qualquer esperança alheia, eles não prestam a qualquer proselitismo. Nus no palco do mundo, fluem, fulgem, apetece dizer crepitam. Nem falam: são canções suas falas, são a própria canção. Poderiam até nem se ver, deixando-se apenas pressentir por detrás da tela de fundo da ilusória “realidade”, como os desejaria o seu criador – um “louco” que, fugindo do sucesso como o diabo da cruz, põe um ponto final na literatura e acolhe-se a um hospício até à hora da morte, que ocorre (tinha de ser!) num dia de Natal. Paz à sua Bondade – afinal, num mundo de loucos, era esta a sua persistente loucura… – e viva a Gata Borralheira!

Vitor Silva Tavares

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Porquê fazer teatro? Porque gosto da beleza inútil cuja utilidade está exactamente nessa definição. Porque é a poesia completa. Porque é o caminho das nações cansadas.

Porquê fazê-lo no Teatro de Sintra? Porque gosto dos outsiders de gosto, bem e mal comportados.

Porquê a Gata? A Gata (não Agatha) é e não é um conto de fadas, conto moral e imoral, tem e não tem um happy-end, apresenta-se como é narrativa semiquente, sorridente, de erótica light. Porque o feminino é observado a partir do sapatinho, o masculino a partir do tédio.

Porquê Robert Walser? Porque nasceu suíço  (1878), morreu quase génio sem cidadania de facto (1956). Porque os tradutores o souberam privatizar em português.

Porquê feito desse modo, leve, dançante e vertical? Porque a leveza é o contrário da leviandade, a dança é o corpo projectado no espaço e porque se constrói na vertical quando o espaço horizontal já não chega. E porque as formas não são inocentes.

Mais alguma coisa? Porque “…a possibilidade é um vasto mundo”, como diz o príncipe sem nome da “Gata Borralheira”.

Jorge Listopad

FICHA TÉCNICA E ARTÍSTICA

Autor: Robert Walser; Tradução: Célia Henriques; Revisão Literária: Victor Silva Tavares; Dramaturgia e Encenação: Jorge Listopad; Interpretação: Cristina Basílio, Ana Fazenda, Maria João Fontaínhas, Mário Redondo, Tiago Matias, Nuno Correia Pinto, Paulo Nunes, Jaime Mateus, Mariana Faria, Patrícia Salvado; Músico e Música: António Rocha; Cenografia: António Casimiro; Figurinista: Ana Silva Sousa; Coreografia: Susana Correia / Gunther Lang; Imagem Gráfica: Eva Armisén; Fotografia e Arranjos Gráficos: André Rabaça; Desenho de Luz: Carlos Arroja e José Carlos Nascimento; Sonoplastia: Carlos Arroja; Operador de Luz e Som: Carlos Arroja / André Rabaça; Contra Regra e Apoio Geral: Tiago Matias; Direcção de Produção: Maria João Fontaínhas; Produção Executiva: Penélope Melo e Ana Rita Osório; Direcção de Montagem: Nuno Correia Pinto; Montagem: Carlos Arroja, André Rabaça e Jorge Coelho; Costureira: Maria Cândida Lima