O convite, que a Companhia de Teatro de Sintra me fez para encenar “O Príncipe” permite-me, numa altura particular da minha vida de actor, reflectir à volta do Calímaco, personagem de “A Mandrágora”, deste mesmo Maquiavel, que interpretei sob a direcção de Ricardo Pais nos idos de 70 ao serviço de “Os Cómicos”.
Reflexão sobretudo à volta deste grupo desaparecido na voragem dos dias cinzentos dedicados ao teatro pela razão de estado.
Contrariando o senso “maquiavélico” comum, destaco na minha leitura do autor a subtileza na detecção de princípios que, por exemplo, visam o bem geral (e não o interesse particular). Admitida a necessidade do poder na regulação da vida dos homens em comunidade, só uma constante reafirmação de alguns princípios pode furar o constrangimento e dar espaço à liberdade, “esse bem precioso”, e ao vigor necessário para a defender.
Entre as subtilezas de quem escreve afinal sobre a fragilidade do poder e do político, encontram-se: a preocupação de saber tirar a lição das “coisas”, a necessidade de atender constantemente aos mínimos detalhes, a necessidade de prever à distância.
Aspectos facilmente esquecidos na rotatividade democrática, ou por ela fragilizados, para mal dos povos.
Entre esses princípios, conta-se igualmente o de que a lição dos antigos se deve constituir num dos valores fundadores de qualquer poder. O que não quer dizer a transposição literal do passado, mas sim um trabalho de renovação, de desenvolvimento, e um trabalho de todos os dias. Trabalho, apesar disso, não imune ao fenómeno do que é cíclico (e do latente desencanto?), quanto mais não seja porque existirá desde sempre a mesma quantidade de bem, a mesma quantidade de mal.
Como que respondendo à imperiosa necessidade do príncipe, de Maquiavel — ter de exercitar várias vozes, vários corpos — a trama de Graça Almeida Cruz, em boa fortuna propõe os princípios de Maquiavel, do Príncipe, para todos os personagens. Pois, mesmo assim, eles encontraram as necessárias contradições, ao menos por casmurrice, para gerar o conflito.
Muito curiosamente, os jovens actores que aqui se encontraram, não perderam nada quanto à possibilidade de individualizarem fortemente a sua prestação, a sua personagem, mesmo ao nível mais emocional, do sub-texto, e da sua virtú. Pela minha parte, (de certa forma, ainda uma certa memória de “A Mandrágora”) conduzi o trabalho dos actores até um segundo nível de jogo, representando o próprio labor literário do texto e acusando com alegria o conhecimento interno desse jogo.
Liberdade na “poética” da representação que espero seja, também para eles, ainda isenta.
Antonino Solmer
Era um projecto antigo este da adaptação dramática e montagem de “O Príncipe” de Maquiavel. A primeira, adaptação, já a Graça Afonso a tinha pronta há mais de dois anos; a montagem da peça, teve de esperar por “circunstâncias propícias”, o que quer dizer capacidade financeira e tempo adequado à sua representação, como nos parece ser este período que se vive, em Portugal, de eleições autárquicas, e a nível mundial de um cínico, e maniqueísta, combate entre “bons” e “maus”.
Cumpre-se deste modo um dos objectivos que nos leva a fazer teatro, e que tem a ver com o facto do objecto artístico reflectir, ou/e ajudar a reflectir, sobre a realidade do tempo em que vivemos.
Num tempo em que a luta política se esvazia cada vez mais de ideias e se enche de marketing; em que em vez da confrontação pelo debate, se assiste à confrontação de fundamentalismos, a (re)leitura de Maquiavel, pode ser uma das maneiras de chegar à outra margem, deixando do lado de lá as guerras pelo voto, pelas audiências, pelo politicamente correcto e vazio de sentido.
Na linha estética que traçamos desde a fundação da Companhia de Teatro de Sintra – e já lá vão doze anos -, o cruzamento de experiências estéticas foi sempre um vector privilegiado.
Assim continuamos (novamente) com um velho cúmplice destas andanças, o actor-encenador e professor Antonino Solmer.
João de Mello Alvim
Adaptação: Graça Afonso Cruz; Encenação: Antonino Solmer; Assistência Geral: Maria João Fontaínhas; Interpretação: Ana Fazenda, Maria João Fontaínhas, Nuno Correia Pinto, Paulo Nunes, Pedro Penim, Ricardo Alves e Tiago Matias; Espaço Cénico/Adereços: Companhia de Teatro de Sintra/Pedro Aguilar; Guarda Roupa: Companhia de Teatro de Sintra; Desenho de Luz: Carlos Arroja e André Rabaça; Sonoplastia: Carlos Arroja; Direcção de Imagem Gráfica/Fotografia/Cenografia: Pedro Aguilar; Operador de Luz e Som: Carlos Arroja e André Rabaça; Contra Regra e Apoio Geral: Tiago Matias e Ana Fazenda; Direcção de Montagem: Nuno Correia Pinto; Montagem: Carlos Arroja e André Rabaça; Direcção de Produção: João de Melo Alvim; Produção Executiva: Penélope Melo; Secretariado: Ana Rita Osório; Interpretação: Ana Fazenda, Maria João Fontaínhas, Nuno Correia Pinto, Paulo Nunes , Pedro Penim, Ricardo Alves e Tiago Matias
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